Polêmicas, inimigos e títulos: relembre a trajetória do dirigente Eurico Miranda, que nunca passou despercebido

Foto: André Durão/GloboEsporte.com
O estilo desafiador, muitas vezes bravateiro, tornou-se marca de Eurico Ângelo de Oliveira Miranda, que morreu nesta terça aos 74 anos, vítima de câncer no cérebro. Era a postura preferida do histórico dirigente nos momentos de defender os próprios pontos de vista. Comandou o futebol do Vasco, atraindo amor e ódio, dentro e fora do clube, de aliados e inimigos, entre os triunfos e os fracassos colecionados.
“Quem falou?”
“Crise? Que crise?”
Eram duas das frases que Eurico adorava bradar, para questionar adversários políticos, dirigentes, jornalistas e as notícias que o contrariavam.
A primeira aparição do cartola no noticiário do Vasco aconteceu quando Eurico tinha 25 anos. Um fotógrafo do jornal “O Globo” o flagrou desligando a chave de energia elétrica da sede da Lagoa. Quis acabar com a sessão do Conselho Deliberativo que tratava da cassação do presidente Reinaldo Reis. Foi em vão a tentativa desesperada do então vice de Patrimônio, na época conhecido como Eurico Oliveira. A luz voltou, e Reis terminou cassado naquela noite de 25 de novembro de 1969. A edição de “O Globo” da manhã seguinte trouxe a foto, com a legenda “Mão do Eurico”, enquanto a reportagem narrava o ocorrido.
Mão de Eurico, fotografada apagando a luz na sessão de cassação do presidente Reinaldo Reis — Foto: Reprodução O Globo / 26-11-1969
Fisioterapeuta formado e graduado em Direito pela PUC do Rio de Janeiro, Eurico havia começado a trabalhar no Vasco como diretor de cadastro, em 1967, com 23 anos. Ocupou diversos cargos e foi aumentando seu prestígio com os que sucederam Reinaldo Reis na presidência: Agathyrno da Silva Gomes, Alberto Pires Ribeiro e Antônio Soares Calçada. Ganhou notoriedade, como diretor de Futebol, ao dar um drible no Flamengo e ajudar a repatriar Roberto Dinamite, em maio de 1980, quase cinco meses após o artilheiro ter trocado o Vasco pelo Barcelona, da Espanha.
De 1986 a 2001, já como vice-presidente de Futebol do Vasco, Eurico Miranda esteve à frente de campanhas memoráveis, como as dos títulos brasileiros de 1989, 1997 e 2000, da Libertadores de 1998 e da Copa Mercosul (hoje, Sul-Americana) de 2000. Nesse período de 15 anos, enquanto foi o mandachuva do presidente Antônio Soares Calçada no futebol, o Vasco ergueu 37 taças, incluindo turnos de Campeonato Carioca, o Rio-São Paulo-1999 e troféus de torneios internacionais, como o tricampeonato do mítico Troféu Ramón de Carranza, na Espanha.
Todas as conquistas orgulhavam Eurico Miranda, mas especiais eram as vitórias sobre o Flamengo. Personalista, o dirigente transformou a rivalidade entre os clubes em disputa particular. Odiava perder para o rubro-negro e entrava em êxtase nos triunfos.
– Vasco x Flamengo é um campeonato à parte – gostava de resumir.
Puxava o coro de “Casaca” nos vestiários e momentos festivos. E não temia as declarações polêmicas. Por isso, colecionava desafetos. Dentro e fora do clube.
– Já comprei 30 mil litros de chope. E paguei. Tenho certeza de que vamos ser campeões porque nosso time é muito melhor do que o Flamengo – avisou, já presidente, antes da derrota na final do Campeonato Carioca de 2004 para o arquirrival.
Em campo, a vitória do Flamengo por 3 a 1, com três gols de Jean, fez a torcida adversária soltar o grito nas arquibancadas do Maracanã: ”Arerêêêê, o chope do Eurico eu vou beber!”.
A bravata ainda faria o cartola perder a cabeça e custaria a ele uma condenação por agressão. Depois do jogo, ao ser perguntado pelo repórter Carlos Monteiro, de “O Dia”, sobre onde estariam os “tais 30 mil litros de chope comprados”, Eurico deu um soco no jornalista. Levado ao Juizado Especial Criminal (Jecrim) do Maracanã, terminaria absolvido pelo juiz Murilo Kieling. O Ministério Público Estadual e o advogado do jornalista recorreram, e o já presidente do Vasco foi condenado a seis meses de prisão. A pena seria substituída, em março de 2006, pelo pagamento de R$ 10 mil de indenização. Eurico recorreu até ao STF, mas sofreu outra derrota, em julho de 2007.
Eurico tinha um jeito peculiar de lidar com os jogadores, especialmente, os destaques do time. Na campanha do título brasileiro de 1997, dizia para quem quisesse ouvir que o segredo do alto astral e do sucesso do atacante Edmundo naquele período era mantê-lo como o centro das atenções:
“Edmundo não pode ter concorrentes. Precisa ser a estrela da companhia” , resumiu Eurico
Fala bobagem não era crime em São Januário. Desde que o falastrão fizesse gols e caísse nas graças da torcida.
– No Vasco, a gente releva algumas coisas, quando o sujeito tem caráter e bom coração – emendou Eurico, em 1998. – O Donizete, por exemplo, reclama da reserva, fala bobagem, mas, no dia seguinte, é o primeiro a pedir desculpas – completou, numa análise divertida sobre o “Pantera”.
O estilo intempestivo de Eurico Miranda vinha desde criança. Nascido a 7 de junho de 1944, ganhou o nome de batismo em homenagem ao general Eurico Gaspar Dutra, presidente do Brasil de 1946 a 1951. Álvaro e Alexandra, os pais, haviam trocado Arouca, no norte de Portugal, pelo Rio de Janeiro, na década de 30. O menino Eurico e os irmãos Álvaro e José Alberto estudaram no tradicional Colégio Santo Inácio, em Botafogo. Tirava boas notas e era coroinha na capela, mas se envolvia em brigas e terminou expulso da escola também por insistir em vestir a camisa do Vasco sobre o uniforme.
Os discursos de enfrentamento e de defensor do Vasco o levaram à política partidária 50 anos depois de nascer. Conquistou o primeiro dos dois mandatos de deputado federal em 1994.
– Sempre digo, lá em Brasília, que não sou representante do povo. Sou representante do Vasco. Não prometi água, habitação, luz, nada. Só defender o Vasco. Meu voto é na emoção, mas aliado à competência – repetia, à época.
Antes, aliou-se à Ricardo Teixeira, que viu em Eurico Miranda a liderança que poderia ajudá-lo a ganhar a eleição para a presidência da CBF. Como prêmio, tornou-se o primeiro diretor de Futebol na gestão do novo presidente, em janeiro de 1989. Conseguiu, de imediato, nomear Sebastião Lazaroni técnico da seleção brasileira, que conquistaria a Copa América em 16 de julho daquele mesmo 1989, acabando com um jejum continental de 40 anos.
Quatro dias antes da conquista da Copa América, em plena concentração da seleção brasileira no antigo Hotel Intercontinental, no Rio, Eurico Miranda aproveitaria seu cargo na CBF e na seleção para aplicar o maior dos golpes desferidos contra o arquirrival Flamengo. Em reunião com o atacante Bebeto, arquitetou o plano para o artilheiro daquela Copa América, com seis gols, emitir e depositar, no dia 28 de julho de 1989, na Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro (FERJ), um cheque de seis milhões quinhentos e vinte e oito mil e vinte e um cruzados novos. O jogador comprou o próprio passe, após não ter chegado a um acordo para a renovação de contrato com o Flamengo, que fixara o preço do ídolo, na FERJ. O dinheiro usado por Bebeto, claro, havia sido antecipado pelo Vasco. A revista “Placar” publicou o dia a dia da negociação.
Por divergências com Ricardo Teixeira, Eurico pediu demissão do cargo na CBF em setembro de 1989, apenas oito meses depois de assumir.
Dedicado exclusivamente ao Vasco, viu o clube ganhar o Brasileiro daquele mesmo ano, com Bebeto no ataque do time dirigido por Nelsinho Rosa – assistente técnico de Lazaroni na seleção.
Quando Antônio Soares Calçada anunciou que se retiraria da presidência do Vasco em janeiro de 2001, depois de 18 anos (desde 1983) no poder, o então vice de Futebol viu o caminho livre e se elegeu presidente para uma fase prevista como de novas glórias, mas que se revelaria sombria. Eurico Miranda foi empossado a 22 de janeiro de 2001, quatro dias após o Vasco conquistar a Copa João Havelange (Brasileiro-2000), ao vencer por 3 a 1 a final diante do São Caetano (SP).
Nos primeiros sete anos dele na presidência, de 2001 a 2008, o Vasco ganhou apenas um Campeonato Carioca, o de 2003, além das Taças Guanabara (2003) e Rio (2001, 2003 e 2004). A melhor colocação na Série A do Brasileiro foi o sexto lugar, em 2006.
Eurico mandava e desmandava na Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro. Em 2007, tomou para si o microfone, ordenou a todos os presentes que se sentassem e promoveu a eleição de Rubens Lopes como novo presidente da FERJ, desafiando o interventor Hekel Raposo, a Polícia Militar e uma ordem judicial que tentaram impedir o pleito.
Na política, o deputado federal enfrentou uma CPI do Futebol no Senado. Entre fevereiro e junho de 2001, a CPI provou que Eurico desviara recursos do Vasco, acusando-o de aprovação indébita e falsidade ideológica, na época do acordo de patrocínio do Bank of America com o clube. A CPI descobriu que o dublê de cartola e político usou “laranjas” para receber recursos que saíam da Vasco da Gama Licenciamentos (VGL). Entre 1996 e 2000, as contas de Aremithas José de Lima, funcionário humilde do Vasco, movimentaram R$ 13,5 milhões, usados por Eurico também como fundos de campanha política.
Contracapa do jornal O Globo sobre a investigação da CPI do Futebol no Senado — Foto: Acervo Jornal O Globo / 05-02-2001
Mesmo assim, Eurico Miranda não foi cassado. Em 2002, com ajuda do ex-presidente da Câmara dos Deputados e correligionário Severino Cavalcanti, conseguiu o arquivamento do processo de cassação de mandato.
– Sou mais importante do que o governador – provocava, um ano antes, em entrevista à revista “Isto É”, debochando da CPI do Futebol no Senado.
Nos dois mandatos de deputado federal, entre 1994 e 2002, Eurico Miranda manteve os três filhos (Mário, Eurico Ângelo e Álvaro) e um sobrinho (Alexandre), como funcionários de gabinete. Na época, os salários do quarteto representavam um total mensal de R$ 10 mil.
Apenas em 2006, Eurico teve o registro de candidatura impugnado em primeira instância, mas não pelo TSE. Acabou concorrendo, tentando um novo mandato, porém, sem conseguir se eleger. A imagem do político estava arranhada para sempre.
Em junho de 2008, Eurico ganhou mais uma disputa para a presidência do Vasco, mas a Justiça determinou o cancelamento da eleição, marcada por fraudes, e abrindo caminho para a vitória do opositor Roberto Dinamite, maior artilheiro da história cruzmaltina. O clube tentou se reerguer no meio do caos administrativo, mas, naquele mesmo ano, naufragaria com o primeiro rebaixamento à Série B, terminando a Série A em 18º lugar. A segunda queda, também sem Eurico e com Roberto à frente, aconteceria em 2013.
A incompetência do adversário político ressuscitou o velho cartola, que, seis anos antes, todos julgavam varrido do clube. Eurico Miranda estava de volta ao Vasco, ganhando a eleição e reassumindo a cadeira de presidente em 2 de dezembro de 2014.
Correligionários em reunião de campanha de Eurico Miranda à presidência do Vasco, em 2014 — Foto: Arquivo Pessoal
Desta vez, ele não seria poupado. Em dezembro do ano seguinte, o Vasco sucumbiria ao terceiro rebaixamento do século 21. Eurico havia prometido: “o Vasco não cai”. E bradou, prometendo ir para a Sibéria se isso ocorresse. O Vasco caiu, e mais uma frase de efeito não passou de bravata. Desta vez, o dirigente sentiu, como protagonista, o tamanho de uma dor irreparável.
– Para que não reste dúvida: o único e exclusivo responsável pelo rebaixamento do Vasco sou eu – afirmou, sem fugir à responsabilidade, no dia 7 de dezembro de 2015, menos de 24 horas após a queda, não sem recorrer a mais uma de suas frases de efeito. – Tem uns caras (críticos) que devem estar tristes, porque gostariam de ir comigo para a Sibéria.
De 2015 a 2017, Eurico alegou que, antes de investir no time, precisava resolver o caos administrativo deixado por Roberto Dinamite. No primeiro ano, ganhou o Campeonato Carioca, mas acabou rebaixado à Série B do Brasileiro. O Vasco voltou à elite como terceiro colocado da Segundona-2016, ano em que conquistou mais um título carioca. Logo no primeiro ano de volta à Série A em 2017, conseguiu a vaga na pré-Libertadores-2018.
Mais uma eleição, em 7 de novembro de 2017, acabaria em confusão. Após a vitória de Eurico, foi anulada pela Justiça a urna 7, sob alegação de fraude, o que significou a vitória de Julio Brant. O que parecia impossível ainda iria acontecer. Em novo round, desta vez no Conselho, Eurico e Roberto Monteiro se aliaram a Alexandre Campello, para derrotar Julio Brant no dia 20 de janeiro de 2018. O velho dirigente mostrou poder, como líder dos beneméritos, que contrariaram a votação e a vontade da maioria dos sócios do Vasco pela primeira vez na centenária história vascaína.
Eurico Miranda chegava a fumar dez charutos por dia — Foto: André Durão/GloboEsporte.com
O velho cartola gostava de aparecer em público fumando charutos. Houve tempos em que chegou a fumar mais de dez por dia. Com aparência debilitada desde 2013, dois anos depois daria uma entrevista com postura desafiadora, diante dos noticiários sobre um possível afastamento do futebol para tratamento de saúde.
Eurico Miranda lutava contra um tumor no cérebro. Nos últimos sete meses, o quadro de saúde se agravou. Nos festejos dos 120 anos de fundação do Vasco, no último dia 21 de agosto, o atual presidente do Conselho de Beneméritos do Vasco foi à Câmara dos Vereadores, de cadeira de rodas e exibindo um semblante abatido, que assustou seguidores e até desafetos.
Eurico Miranda deixa a viúva Sílvia Brandão de Oliveira Miranda, quatro filhos e sete netos.
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