Covid-19 gerou volume muito maior de pesquisas acadêmicas do que Zica e Ebola em seus auges

 

Foto: NICOLAS ASFOURI/AFP / AFP

O ano de 2020 termina com mais de 250 mil trabalhos científicos publicados sobre a Covid-19, totalizando 4,4% da produção científica mundial de acordo com o banco de dados Dimensions, especializado em métricas acadêmicas. A parcela da comunidade científica mobilizada para trabalhar em uma única doença não tem precedentes na história recente.

O diferencial da Covid-19, claro, é que a epidemia varreu o mundo inteiro — incluindo os dois países que mais produzem ciência no planeta: China e Estados Unidos.

A parcela de 4,4% se torna mais impressionante quando, de acordo com a mesma base de dados, compara-se os trabalhos sobre Covid-19 com os de duas grandes epidemias recentes. O surto de Ebola na África, concentrado em 2014 e 2015, e a epidemia de Zika na América Latina em 2016 e 2017 não chegaram a representar mais que 0,2% da produção científica da época.

O número extraído pelo Dimensions, projeto que tem uma parceria com a plataforma Google Cloud para garimpar e compilar dados sobre trabalhos científicos no mundo todo, não se refere só a ciências biomédicas, mas a todas as áreas, incluindo física, química ou matemática. Os estudos classificados como campos de medicina e biologia, na verdade foram responsáveis por apenas dois terços dos trabalhos mencionando a doença. O terço restante inclui estudos sociais (6% do total) e áreas tão distintas quanto psicologia (4,4%) e computação (3,8%).

Brasil ganhou peso

O grau de mobilização que o novo coronavírus provocou na comunidade acadêmica mundial se refletiu no Brasil também. Nos últimos anos, o país vem representando cerca de 2% da produção científica mundial, mas quando se faz um recorte apenas com trabalhos sobre a Covid-19, a parcela sobe para 2,8%. Nós fomos o décimo país que mais produziu ciência sobre o coronavírus.

Os números da Dimensions estão de acordo com outras bases de dados de literatura acadêmica estimaram, incluindo a Scopus e a Web of Science, ambas estimando em 3,2% a produção do Brasil na produção científica mundial de Covid-19.

O aumento dessa participação talvez reflita uma maior necessidade de pesquisar a Covid-19 internamente, porque o país foi um dos mais atingidos pela pandemia. Essa á opinião de Eugênio Mello, diretor científico da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), a maior agência de fomento à ciência do país.

— Eu diria que esse aumento percentual do Brasil, infelizmente, está associado com a dureza da epidemia no país — afirma Mello. — A China, por exemplo, onde a Covid-19 surgiu, publicou muito sobre a doença no início. No começo da pandemia, respondia por 50% dos artigos publicados. Com o avanço do vírus, os EUA e Europa aumentaram o número de publicações, e o Brasil acabou entrando nessa tendência.

Uma métrica importante para entender o quão entremeados estão o impacto da Covid-19 e a pesquisa sobre a doença é o número de testes clínicos realizados no Brasil. O país teve 129 ensaios registrados, e foi o 15º lugar no mundo. Para testar drogas e vacinas, afinal, é preciso ter infraestrutura de pesquisa, que é razoável no Brasil, e um contingente grande de pessoas doentes, que o país teve de sobra.

Queda na qualidade

Um outro padrão importante observado em 2020, acompanhando a explosão da pesquisa sobre o novo coronavírus, foi uma enxurrada de ciência questionável produzida durante a pandemia.

Por causa da pressa para se publicar resultados que ajudassem os médicos na linha de frente logo no início da pandemia, muita pesquisa médica foi divulgada sem um controle de qualidade sobre os autores. É o caso dos chamados “pré-prints”, estudos que são publicados antes de passarem pela chamada “revisão por pares”, que avalia os artigos submetidos a periódicos acadêmicos indexados.

Estudos revisados em revistas prestigiadas costumam ser a medida de status na comunidade científica, com os pré-prints se limitando a um número menor de trabalhos que requeriam exposição rápida algum motivo. Durante a pandemia, porém, houve uma explosão no número de pré-prints sobre Covid-19, que representaram 15% da ciência produzida sobre o tema.

O problema com a qualidade da ciência também se refletiu em um número alto de estudos que acabaram sendo “retratados” — ou seja, considerados inválidos pelos editores ou pelos próprios autores após a sua publicação.

“A revisão robusta de manuscritos por pares é vital, especialmente quando o acesso aberto aos estudos os torna fáceis de achar e consultar”, diz a especialista Katrina Bramstedt, da Agência de Integridade em Pesquisa de Luxemburgo, em artigo para a revista britânica Journal of Medical Ethics. “A pandemia gerou uma enxurrada de manuscritos, mas o contingente de revisores dos periódicos acadêmicos depende de voluntariado na comunidade acadêmica, o que concorre com compromissos dos pesquisadores que envolvem emprego e família”, escreve.

O fato é que o cenário de publicação científica sofreu uma aceleração e uma consequente queda de qualidade, diz a pesquisadora. Será preciso criar novas estratégias para lidar com esta nova realidade.

O Globo

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