SAMY ADGHIRNI
DE TEERÃ
DE TEERÃ
A
Manhã nasce escura e quente em Robat Karim, cidade - dormitório 30
quilômetros a sudoeste de Teerã, onde uma pequena multidão começa a se
aglomerar em frente à delegacia. Uma barreira de metal separa a massa do
estacionamento, e os policiais cercam dois caminhões, cada um deles
equipado com um imponente guindaste na carroceria.
O
burburinho irrompe quando se abre o portão. Homens encapuzados saem do
prédio, puxando pelo braço um homem baixinho e grisalho, algemado nos
pés e nas mãos; logo mais surge o segundo. Ambos ficam postados ao lado
dos caminhões por alguns instantes, sob a mira de câmeras e celulares.
O baixinho parece travado de tensão e não abre a boca. O outro sorri e faz piada com os policiais, que mal respondem.
Sob
os primeiros raios de sol, um alto-falante estourado lista as acusações
e anuncia a sentença capital contra os dois homens. O primeiro seria um
traficante de drogas reincidente. O segundo, técnico eletricista, foi
acusado de estuprar mulheres ao ir prestar serviços em suas casas.
O
silêncio se instala quando os homens de capuz preto acomodam cada um
dos condenados no alto dos patíbulos, improvisados na caçamba dos
caminhões com tambores de combustível. O alto-falante agora entoa
suratas (versículos) do Corão.
Mãos amarradas nas
costas, o primeiro condenado mexe a cabeça até conseguir beijar a corda
em seu pescoço. O segundo ergue a cabeça e grita. "Sou inocente, abaixo
o regime dos mulás", repete três vezes, gerando um tenso frisson.Um dos acusados sendo levado para o local da execução
Um
tom abaixo, pronuncia sua última frase. "Nasci em nome de Ali [santo
xiita] e morro em nome de Ali", diz ele, antes que um carrasco derrube
no asfalto, com um poderoso pontapé, o tambor que o sustenta. Os
guindastes são imediatamente acionados, içando os dois desgraçados pelo
pescoço a cerca de cinco metros de altura.
Os
corpos suspensos esboçam um trêmulo balançar de pernas, enquanto mãos e
dedos se retorcem devagar. Um rapaz solta: "Eles estão se mexendo que
nem rãs, é isso mesmo que merecem". Mulheres em prantos viram de costas e
se afastam. O estrebuchamento prossegue por cerca de um minuto, até que
os corpos ficam enrijecidos, com a cabeça inclinada num ângulo anormal.
"Já morreram? Sério que já acabou?", pergunta um
adolescente. Outro comemora: "Já gravei tudo no celular, agora posso ir
embora e mandar o vídeo para a galera".
A tensão
se dilui aos poucos. Conversas e risos voltam. Conhecidos se
reencontram, apertam-se as mãos, perguntam pelas novidades. Homens de
terno sem gravata, traje típico dos funcionários do regime, são saudados
com reverência ao circular em meio à turba.
A
maior parte do público é formada por homens jovens. Também há casais e
famílias inteiras, inclusive crianças de colo, que olham fixamente para
os dois homens de olhos fechados e boca aberta pendurados ali na frente.
Após 45 minutos, os guinchos são novamente
acionados, descendo com vagar a carga até o asfalto. Policiais desfazem o
nó no pescoço dos mortos e guardam as cordas num saco preto. Um
médico-legista se inclina sobre os cadáveres, mexe nos olhos deles e
toma-lhes o pulso antes de decretar o óbito. Os policiais se encarregam
de acondicionar os corpos em sacos de lona, que são levados num rabecão.Homens encapuzados levam condenado para ser enforcado
O
sol do verão já pesa quando os policiais dispersam a multidão. A praça é
reaberta ao trânsito, numa cacofonia de buzinas e uivos das sirenes dos
carros oficiais. Os chinelos de couro que caíram dos pés de um dos
condenados permanecem no chão. Aviões sobrevoam a praça, situada na rota
de pouso do aeroporto internacional Imam Khomeini, o maior do país.
NOTÍCIAS
No
dia seguinte à execução em Robat Karim, a agência de notícias
pró-regime Mehr News detalhava os crimes atribuídos aos condenados,
descritos como "diabólicos". Uma reportagem explica que a polícia passou
dois anos à caça do suposto estuprador. A captura só aconteceu, relata a
Mehr News, graças ao zelo de um cidadão comum que reconheceu o
procurado na rua. Segundo a agência, o acusado admitiu para o juiz ter
cometido "atos obscuros".
A dupla execução também
teve destaque nas fotos da imprensa --as imagens aqui publicadas foram
cedidas por um jornalista local. Algumas mostravam o rosto inchado e
desfigurado dos dois. Outras retratavam crianças com expressão tensa por
trás do cordão policial. A TV estatal tratou o tema com mais pudor,
exibindo apenas imagens da multidão e dos preparativos.
Seja
para a mídia oficial ou para os contestadores do regime, o poder
icônico dos guindastes da morte fixou-se como símbolo da opressão que o
Irã enfrenta. Na história em quadrinhos "O Paraíso de Zahra" (LeYa/Barba
Negra), sobre o desaparecimento de um jovem envolvido nos protestos
pós-eleições de 2009, eles ocupam uma tétrica página. "Putz, mais um
daqueles circos doentios", diz um taxista ao perceber o motivo do
congestionamento à sua frente.Os corpos suspensos esboçam um trêmulo balançar de pernas, enquanto mãos e dedos se retorcem devagar
A
voz mais contundente contra as execuções públicas --e a pena de morte
em geral-- surgiu do coração do establishment iraniano. O fotógrafo
Ebrahim Noroozi, 32, ex-aluno de escolas religiosas e hoje editor de
imagens no jornal pró-regime "Jam-e-Jam", registrou imagens de
enforcamentos que o levaram a faturar em abril o segundo lugar no World
Press 2012, um dos mais prestigiados prêmios internacionais de
fotografia, na categoria "temas contemporâneos".
Em
entrevista ao "New York Times", Noroozi afirmou: "Não vou a execuções
para me divertir. Como jornalista, não quero transmitir nenhum
julgamento [...] Mas o ato em si me enoja." E completou: "É um ciclo de
violações que termina com uma plateia testemunhando o ato final de uma
história que causou dor a muita gente."
ENFORCAMENTOS
Execuções
em praça pública voltaram ao dia a dia do Irã desde o ano passado,
quando o governo recuou do banimento anunciado em 2008. Desde então,
toda semana jornais e sites de notícias anunciam data e local dos
enforcamentos. Em cidades pequenas, as informações são divulgadas em
cartazes pelas ruas.
Críticos do regime e
ativistas de direitos humanos dizem que a volta das execuções públicas
--e da autorização para que a imprensa local as registre-- é parte da
estratégia do governo para semear o terror num país ainda traumatizado
pela última eleição presidencial.
Em 2009, o
regime enfrentou a onda de protestos contra fraudes na reeleição do
conservador Mahmoud Ahmadinejad. O movimento só foi esmagado quando
interveio o líder supremo do país, o aiatolá Ali Khamenei, detentor da
palavra final em todos os temas nacionais.Multidão acompanha estática o macabro espetáculo em praça pública
Khamenei
avalizou a controversa vitória de Ahmadinejad e ordenou repressão
impiedosa de qualquer contestação. Aos olhos do aiatolá, era a própria
sobrevivência do regime teocrático, em vigor desde a Revolução Islâmica
de 1979, que estava e continua em jogo. A mão pesada do governo contra
os criminosos é amplamente percebida como um recado a eventuais
dissidentes.
Apesar de sua ampla visibilidade na
mídia iraniana, as execuções públicas representam uma parcela modesta do
total de sentenças capitais --menos de 20%, segundo estimativas
assumidamente imprecisas num país com poucas estatísticas confiáveis. A
maior parte das condenações à morte é aplicada dentro das prisões.
No
ano passado, o número total de execuções no Irã foi de ao menos 360,
segundo a ONG Anistia Internacional. Iranianos exilados dizem que o
número real é duas vezes maior. Em 2010, teriam sido 252, ainda de
acordo com a AI. Cinco anos antes, o número não chegava a cem. O Irã é
hoje vice-líder do ranking mundial de execuções, ficando atrás apenas da
China.
São raros os casos de mulheres condenadas
à morte. Mas o Irã é apontado por grupos de defesa dos direitos humanos
como o único país a sentenciar regularmente menores de idade, apesar de
ser signatário da Convenção dos Direitos da Criança, que veta a
prática.
Condenados à morte podem, em tese,
recorrer da sentença à Corte Suprema, a quem cabe confirmá-la ou ordenar
a reabertura do processo em caso de irregularidade. Não há limite para a
quantidade de recursos apresentados.
Os mais
expostos à sentença são os grandes narcotraficantes, que respondem por
cerca de dois terços das execuções. Estupradores e assassinos também
estão na mira dos juízes. Há, ainda, casos isolados de sequestro,
terrorismo, adultério, homossexualidade e consumo contumaz de álcool.
O
Irã não admite ter prisioneiros políticos, mas não faltam casos de
dissidentes condenados à morte por acusações tidas como forjadas. Volta e
meia os condenados são informados da sentença dias antes da execução e
têm direito a receber uma última visita da família.
PERDÃO
Em
alguns casos de assassinato, assalto ou estupro, um juiz islâmico
convoca a família da vítima a se pronunciar sobre um eventual perdão
minutos antes da execução. Há relatos de clemência de última hora que
obrigaram policiais a cortar cordas já estendidas pelo corpo do
condenado. O perdão também pode surgir diretamente do gabinete do líder
supremo, mas os casos são raros.Também
há casais e famílias inteiras, inclusive crianças, que olham fixamente
para os dois homens de olhos fechados e boca aberta pendurados ali na
frente
O enforcamento substitui o
pelotão de fuzilamento dos tempos da monarquia, em tese ainda em vigor,
mas abolido na prática. Se aplicada num golpe rápido e seco, a forca
leva à quebra das vértebras da coluna cervical e à secção da medula
espinhal, causando morte quase instantânea.
Assim
foi executado o ex-ditador iraquiano Saddam Hussein numa prisão de
Bagdá, em 2006. Mas, na falta do impacto, conhecido como "fratura do
enforcado", a morte se dará por estrangulamento e falta de irrigação do
cérebro, num processo mais lento e sofrido.
APEDREJAMENTO
Também não há mais registro de execução por apedrejamento, oficialmente banida desde a minirreforma jurídica do ano passado.
Céticos
veem brechas na nova lei e sustentam que a lapidação ainda pode ser
aplicada contra Sakineh Ashtiani, iraniana condenada à morte sob
acusação de ter traído e mandado assassinar o marido. O caso gerou
comoção mundial, levando o então presidente Lula a oferecer, em 2010,
asilo à condenada.
O Irã recusou, mas a pressão
brasileira contribuiu para a revogação da sentença e posterior abolição
do apedrejamento. Sakineh encontra-se hoje num limbo jurídico, no qual
não se sabe sequer se a pena capital está mantida.
O
corredor da morte iraniano abriga outros acusados cuja condenação gerou
comoção internacional. O mais ilustre é o do pastor Youssef Nadarkhani,
que, segundo advogados, está preso e ameaçado de execução desde 2009
por ter se convertido ao cristianismo.
O Irã nega
a condenação por apostasia --o abandono da fé-- e diz que Nadarkhani,
33, foi inicialmente condenado à morte por uma série de crimes, entre
eles estupro, ameaça à segurança nacional, extorsão e corrupção. A
justiça iraniana afirma que a pena foi revogada, mas o pastor continua
preso, num quadro legal incerto.
Amir Hekmati,
29, que tem também cidadania americana, está detido sob acusação de
terrorismo e espionagem para a CIA, a agência de inteligência dos EUA.
Ele alega que visitava parentes no Irã quando foi preso e condenado à
morte.
Também ecoa no Ocidente o caso de Saeed
Malekpour, 36, condenado à morte sob pretexto de promover pornografia na
internet. Seus defensores alegam que ele não tem culpa por ter criado
um software que acabou sendo usado por terceiros, sem seu conhecimento,
para criar sites adultos.
Na semana passada,
autoridades anunciaram a condenação à morte de dois iranianos por
repetido consumo de álcool, num caso com ampla repercussão na imprensa
ocidental.
DEFESA
O
governo nega que sua política seja a de espalhar o terror na população e
insiste em que todos os suspeitos têm acesso irrestrito à defesa. Mas
as autoridades não se incomodam em deixar no ar a ideia de que as
execuções servem para inibir ações criminosas.
Diplomatas
iranianos ostentam mundo afora os índices de violência de seu país,
efetivamente baixos, inclusive para padrões europeus. Críticas contra a
metodologia são tratadas como mera diferença de natureza cultural.
Dezenas
de estrangeiros (de europeus e americanos a salvadorenhos, sudaneses e
até um brasileiro) convertidos ao xiismo (ramo do islã predominante no
Irã) alunos da principal escola de aiatolás, em Qom, no sul de Teerã,
não escondem o fascínio pelo "método de redução de criminalidade".
O
discurso religioso é usado para justificar práticas vistas como
bárbaras no Ocidente. A República Islâmica diz seguir à risca as
determinações do Corão em matéria de lei e ordem pública. O discurso
subjacente é de que, por natureza, o islã exige uma interpretação
literal das escrituras como única forma de garantir a paz social.
No
discurso oficial, quem critica o Irã deveria apontar o dedo para abusos
cometidos pelos EUA e seus aliados, entre os quais a Arábia Saudita,
onde ainda se pratica a execução por decapitação.
Essa
justificativa oficial, no entanto, é contestada inclusive por altos
clérigos dissidentes, hoje forçados ao silêncio, que não veem fundamento
teológico na aplicação constante e sistemática de tantas execuções.
Conversando com cidadãos comuns iranianos, inclusive devotos
praticantes, é fácil perceber que a visão dos aiatolás antirregime tem
ampla aceitação.
Há também uma parcela relevante
da população iraniana que não tem apego à religião e, portanto, é
visceralmente contra o governo teocrático. O norte de Teerã é o reduto
de uma classe média urbana e antenada, nascida sob a Revolução Islâmica
(dois terços da população nasceram depois de 1979) e sob forte
influência feminina (60% dos universitários iranianos são mulheres).
Longe
de estar confinada aos bairros burgueses da capital, esta parcela se
espalha pelas principais cidades do país. É este Irã, moderno, mas
sempre nacionalista, que esteve na linha de frente nos protestos
anti-Ahmadinejad de 2009.
Mas a repressão e as
dificuldades derivadas das sanções econômicas por causa do programa
nuclear, cada vez mais duras, secaram a veia política desta parcela da
população cujos líderes permanecem presos ou impedidos de participar da
vida pública. Para muitos jovens, o único projeto de vida é obter um
visto de residência na Europa ou na América do Norte.
FONTE: Extraído da Folha de S. Paulo Online – Edição de 01/07/2012
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